Renan Antunes de Oliveira
Reportagem UOL: Florianópolis (28/03/2014)
Com 65 anos, todos vividos em Passo de Torres (271 km de Florianópolis), o almoxarife Urbano Cardoso até hoje lembra com temor a passagem do furacão Catarina, principal evento da história da cidade: "Pouco antes da meia-noite [de 28 de março de 2004] o Zé Hamilton me ligou avisando de um vento forte, mas eu não dei bola porque por aqui sempre venta bastante" - esta cidade catarinense de 9 mil habitantes na divisa com o Rio Grande do Sul fica num descampado de frente para o mar.
Dez anos depois, Cardoso faz suspense para contar da noite inesquecível: "Quando a tempestade chegou na minha casa [faz uma parada dramática], me agarrei na mulher e na filha [outro momento de silêncio], ficamos juntos, assustados, rezando [aí ele aumenta a voz] enquanto as paredes gemiam e o telhado era arrancado".
Cardoso se recompõe: "As duas choravam de medo, eu tentava protegê-las. Até hoje não sei como escapamos daquela. Nunca vi nada igual e espero não ver de novo". Relatos como o dele são comuns na cidade que ficou no olho do furacão: Passo de Torres recebeu o maior impacto do único fenômeno do tipo já registrado por cientistas no litoral catarinense.
Foto de arquivo: casa destruída pelo furacão Catarina em março de 2004 |
"Na hora mesmo, eu estava em Caxias do Sul (RS), vim correndo no outro dia para ajudar meus pais", conta o engenheiro Márcio Lopes, 35. "Não vi, mas me contaram que foi terrível e os efeitos duram até hoje." Um 'efeito Catarina': "Naquela vez ninguém estava preparado e nem acreditava que seria possível um furacão. Agora, basta um vento mais forte que as aulas são canceladas e o serviço público encerra o expediente", diz Lopes. Cardoso ainda teve a sorte de ser avisado pelo tal amigo Zé Hamilton, prefeito de uma cidade vizinha. Algumas pessoas ficaram assustadas vendo noticiários na TV e saíram da rota mais ou menos prevista para a passagem do Catarina. Mas, a maioria dos da região que seria atingida encarou a histórica tempestade sem sair de casa.
Dona Janete, 35, da Papelaria Michelle, é uma das que ficou: "Éramos seis, meu marido, sobrinhos, filha, todos juntos. O pavor foi grande, mas nossa casa era de material e resistiu bem, tivemos sorte".
Impacto de destruição do furacão catarina nas moradias próximas da orla. |
Sistema de alerta
Por falta de furacões anteriores, o Brasil não tinha um sistema de alerta avançado. Mesmo hoje, Santa Catarina tem apenas uma bóia marítima e um radar (este, em instalação, só ficará pronto em julho) como únicas armas na prevenção de furacões. De lá pra cá os especialistas se dividem para enquadrar o Catarina na tabela Saffir-Simpson, uma criação dos americanos de 1950. Ela está para furacões como a escala Richter para terremotos. Vai de 1 a 5, pela velocidade e duração combinadas. Analistas da Universidade Federal de Santa Catarina acham que ele foi furacão 2, de ventos até 177 km/h. Meteorologistas independentes calculam furacão 1, ventos de 153 km.
A classificação oficial mais aceita para o Catarina é a de furacão 3, conforme um simpósio do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em 2005. O Catarina teria tido velocidade de 180 km horários, combinada com o tempo de duração de cinco horas zunindo: só na passagem dele por Passo de Torres durou desde o telefonema do Zé Hamilton até o amanhecer. A tempestade também atingiu Balneário Gaivota e a praia de Torres, no RS. Seus resultados na região foram devastadores: três mortos, 75 feridos, 1500 casas destruídas e 40 mil danificadas.
Foram estragos em plantações de banana, arroz e fumo. Os prejuízos calculados à época pelas autoridades foram 360 milhões de dólares, R$ 828 milhões ao câmbio de hoje.
Na literatura do Catarina consta que ele se desenvolveu a partir de um ciclone extratropical de núcleo-frio sobre o Atlântico, viajando no sentido leste-sudeste. Tradução: a chuvarada com vento forte desabou do mar para a terra e se dissipou no continente. Mais do seu Urbano: "Não se via nem os molhes no mar, estava tudo coberto de água, foi um horror".
Nem tudo é drama: Gislaine, balconista da Mimi Calçados, dá uma sonora risada quando o repórter pergunta onde ela andava naquela noite: "não lembro mais, para mim foi só uma ventania que passou".
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Rita Dutra
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Geografia/UFSC. Pesquisadora do Laboratório de Gestão Costeira Integrada (LAGECI UFSC).
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